Abaixo transcrevo um trecho do livro Caim, de José Saramago. Aliás, uma vez que o livro é em si uma heresia, sinto-me tentado a cometer uma outra heresia, a saber, pontuar o texto de Saramago... vejamos quanto da beleza do texto se perde com isso de travessões.
Então caim contou a lilith o caso de um homem chamado abraão a quem o senhor ordenara que lhe sacrificasse o próprio filho, depois o de uma grande torre com a qual os homens queriam chegar ao céu e que o senhor com um sopro deitou abaixo, logo o de uma cidade em que os homens preferiam ir para a cama com outros homens e do castigo de fogo e enxofre que o senhor tinha feito cair sobre eles sem poupar as crianças, que ainda não sabiam o que iriam querer no futuro, a seguir o de um enorme ajuntamento de gente no sopé de um monte a que chamavam sinai e a fabricação de um bezerro de ouro que adoraram e por isso morreram muitos, o da cidade de madian que se atreveu a matar trinta e seis soldados de um exército denominado israelita e cuja população foi exterminada até à última criança, o de uma outra cidade, chamada jericó, cujas muralhas foram deitadas abaixo pelo clangor de trombetas feitas de cornos de carneiro e depois destruído tudo o que tinha dentro, incluindo, além dos homens e mulheres, novos e velhos, também os bois, as ovelhas e os jumentos.
- Foi isto o que eu vi - rematou caim - e muito mais para que não me chegam as palavras.
- Crês realmente que o que acabas de contar acontecerá no futuro? - perguntou lilith.
- Ao contrário do que costuma dizer-se, o futuro já está escrito, o que nós não sabemos é ler-lhe a página - disse caim enquanto perguntava a si mesmo aonde teria ido buscar a revolucionária ideia.
- E que pensas do facto de teres sido escolhido para viveres essa experiência?
- Não sei se fui escolhido, mas algo sei, sim, algo devo ter aprendido.
- Quê?
- Que o nosso deus, o criador do céu e da terra, está rematadamente louco.
- Como te atreves a dizer que o senhor deus está louco?
- Porque só um louco sem consciência dos seus actos admitiria ser o culpado directo da morte de centenas de milhares de pessoas e comportar-se depois como se nada tivesse sucedido, salvo, afinal, que não se trate de loucura, a involuntária, a autêntica, mas de pura e simples maldade.
- Deus nunca poderia ser mau ou não seria deus, para mau temos o diabo.
- O que não pode ser bom é um deus que dá ordem a um pai para que mate e queime na fogueira o seu próprio filho só para provar a sua fé, isso nem o mais maligno dos demónios o mandaria fazer.
- Não te reconheço, não és o mesmo homem que dormiu antes nesta cama - disse lilith.
- Nem tu serias a mesma mulher se tivesses visto aquilo que eu vi, as crianças de sodoma carbonizadas pelo fogo do céu.
- Que sodoma era essa?
- A cidade onde os homens preferiam os homens às mulheres.
- E morreu toda a gente por causa disso!?
- Toda, não escapou uma alma, não houve sobreviventes.
- Até as mulheres que esses homens desprezavam?
- Sim.
- Como sempre, às mulheres, de um lado lhes chove, do outro lhes faz vento.
- Seja como for, os inocentes já vêm acostumados a pagar pelos pecadores.
- Que estranha ideia do justo parece ter o senhor...
- A ideia de quem nunca deve ter tido a menor noção do que possa vir a ser uma justiça humana.
- E tu? Tem-na? - perguntou lilith.
- Sou apenas caim, aquele que matou o irmão e por esse crime foi julgado.
- Com bastante benignidade, diga-se de passagem - observou lilith.
- Tens razão, seria o último a negá-lo, mas a responsabilidade principal teve-a deus, esse a que chamamos senhor.
- Não estarias aqui se não tivesses matado abel, pensemos egoistamente que uma coisa deu para a outra.
- Vivi o que tinha de viver, matar o meu irmão e dormir contigo na mesma cama são tudo efeitos da mesma causa.
- Qual?
- Estarmos nas mãos de deus, ou do destino, que é o seu outro nome.