[ATUALIZAÇÃO: uma versão modificada deste texto foi publicada na edição #6 da Revista Originais Reprovados, página 15. Para ir direto ao PDF, clique aqui.]
Eu quero escrever, mas não tenho história alguma pra contar. Não conheço ninguém suficientemente diferente dos demais a ponto de ser um personagem interessante. Aliás, isso de personagem interessante é a causa dos acontecimentos novelescos. Muita gente fala que é inverossímil que o personagem principal de uma trama qualquer escape ileso de tantos incidentes. Mas não vejo nada de perturbador nisso... é uma espécie de Seleção Natural. Se o sujeito morre logo e não escapa de nada, é igual. Sendo igual, por que seria "principal"? Para ser personagem principal, tem que haver algo mais, algo de interessante e diferente, o que me lembra que eu não tenho personagem e, portanto, não tenho história... Mas há muita gente no mundo e não é difícil escolher alguém. Nem peço seis! Um só, já seria de bom tamanho!
Pensar em muita gente me faz pensar nos malditos ônibus lotados que tomamos por necessidade. Por "necessidade", quero dizer aqueles que tomamos para ir ou voltar ao trabalho, por exemplo. Na ida, uma pessoa entra no trabalho e, com seu uniforme e comportamento-padrão, esforça-se por parecer muito igual. Não pode ser interessante um indivíduo que dá tudo de si para parecer normal... Na volta, há esperanças de conhecermos alguém. E foi por este motivo que escolhi um ponto de ônibus para encontrar nosso personagem, a quem me refiro no masculino aqui por que é assim que funciona nosso idioma, mas que, para contrariar, tomarei uma mulher por personagem. Aquela serve.
Ela já sobe. Levava o dinheiro já contado na mão. Faz bem. É detestável quando alguém perde tempo buscando moedas na bolsa, enquanto os outros espremem-se para que a porta do ônibus fosse fechada com eles dentro do veículo. Mantinha o olhar na frente, até mesmo quando entregava o dinheiro ao cobrador. Acho que busca por um lugar vago, o que não era de todo impossível, já que alguém dos que estavam sentados bem poderia levantar-se neste exato momento. Embora possível, não é razoável supor que o lugar ficasse vago até que ela cruzasse a roleta e se dirigisse até lá. Mas olhava assim mesmo... Na verdade, talvez nunca tivesse parado para pensar que talvez não fosse razoável aquilo que fazia instintivamente. No mais, parece que não tinha um lugar melhor para olhar.
Parou de avançar quando chegou suficientemente perto da porta dianteira, por onde desceria. Fixou o olhar na janela. Não é possível a este narrador saber se olhava para sua própria imagem, se via através do vidro, ou se via o que não olhava. Nem se podia saber se estava feliz ou trite. É uma pessoa sem expressão... Ou melhor, estava sem expressão naquele momento e é uma lição que aprendemos rápido que as expressões são fortemente modificadas na presença de conhecidos. Acho que não conhecia ninguém ali naquele ônibus... Provavelmente, não... Certamente, arrisco dizer...
E, enquanto eu me perco arriscando coisas que não são de fato acessíveis à mim, nossa personagem sussura um "Dá licença", que saiu tão inaudível quanto o seu "Obrigado" ao motorista. Ambos aparentemente imperceptíveis à qualquer criatura daquele ônibus, como saem algumas das nossas gentilezas verbais...
Estamos numa rua escura, com pouco movimento de carros. A mulher segue em direção ao estabelecimento mais iluminado que se vê daqui. Parece uma padaria ou algum pequeno...
...Não! Enganei-me. Virou à esquerda. Ali, era tudo de mesma luminosidade. Só casas. Entrou numa qualquer... presumivelmente, a dela. Estava escura, mas a adaptação que a má luminosidade da rua proporcionou aos olhos me permitiu ter uma idéia da distribuição de móveis e uma noção geral da casa. Não era grande, nem pequena. Isso se ela morasse sozinha. Talvez dividisse com alguém (o que a faria pequena), talvez morasse com os pais (o que a faria menor)... não sei. Sem acender luz alguma, e com passos no mesmo ritmo que caminhou do ponto de ônibus até aqui, dirigiu-se à um cômodo, de onde saiu antes que eu a acompanhasse e foi ao banheiro, que era agora o único cômodo iluminado da casa. Hesitei... Talvez devesse esperá-la sair... Dane-se: Segui. Tomou banho sem pressa, nem prazer aparente. A desgraçada era completamente desinteressante e sem surpresas! Ensaboava-se sem malícia, nem cuidado (nem chegou a lavar o pé!). Ao fim daquele espetáculo sem graça, o primeiro indício de alguma emoção: ao enxugar o rosto, desceu com a toalha até o peito e ali a segurou por um momento com as duas mão. Imóvel, fixava o olhar profundamente na direção de um azulejo que não tinha nada de especial. Enfim, um torcido na boca que pareceria um sorriso a quem tivesse disposto a ver um. Ah! Se ao menos tivesse outras pessoas na casa, ou se a maldita infeliz conversasse sozinha... Saindo dali, foi deitar. Dormiu rápido e quase não se mexeu durante a noite... Ninguém chegou na casa. Somente a manhã chegou no mesmo instante em que eu saí. Não foi de todo perdido... Mesmo não sendo interessante minha escolha, este texto morre junto como tempo que este narrador queria matar.
Eu quero escrever, mas não tenho história alguma pra contar. Não conheço ninguém suficientemente diferente dos demais a ponto de ser um personagem interessante. Aliás, isso de personagem interessante é a causa dos acontecimentos novelescos. Muita gente fala que é inverossímil que o personagem principal de uma trama qualquer escape ileso de tantos incidentes. Mas não vejo nada de perturbador nisso... é uma espécie de Seleção Natural. Se o sujeito morre logo e não escapa de nada, é igual. Sendo igual, por que seria "principal"? Para ser personagem principal, tem que haver algo mais, algo de interessante e diferente, o que me lembra que eu não tenho personagem e, portanto, não tenho história... Mas há muita gente no mundo e não é difícil escolher alguém. Nem peço seis! Um só, já seria de bom tamanho!
Pensar em muita gente me faz pensar nos malditos ônibus lotados que tomamos por necessidade. Por "necessidade", quero dizer aqueles que tomamos para ir ou voltar ao trabalho, por exemplo. Na ida, uma pessoa entra no trabalho e, com seu uniforme e comportamento-padrão, esforça-se por parecer muito igual. Não pode ser interessante um indivíduo que dá tudo de si para parecer normal... Na volta, há esperanças de conhecermos alguém. E foi por este motivo que escolhi um ponto de ônibus para encontrar nosso personagem, a quem me refiro no masculino aqui por que é assim que funciona nosso idioma, mas que, para contrariar, tomarei uma mulher por personagem. Aquela serve.
Ela já sobe. Levava o dinheiro já contado na mão. Faz bem. É detestável quando alguém perde tempo buscando moedas na bolsa, enquanto os outros espremem-se para que a porta do ônibus fosse fechada com eles dentro do veículo. Mantinha o olhar na frente, até mesmo quando entregava o dinheiro ao cobrador. Acho que busca por um lugar vago, o que não era de todo impossível, já que alguém dos que estavam sentados bem poderia levantar-se neste exato momento. Embora possível, não é razoável supor que o lugar ficasse vago até que ela cruzasse a roleta e se dirigisse até lá. Mas olhava assim mesmo... Na verdade, talvez nunca tivesse parado para pensar que talvez não fosse razoável aquilo que fazia instintivamente. No mais, parece que não tinha um lugar melhor para olhar.
Parou de avançar quando chegou suficientemente perto da porta dianteira, por onde desceria. Fixou o olhar na janela. Não é possível a este narrador saber se olhava para sua própria imagem, se via através do vidro, ou se via o que não olhava. Nem se podia saber se estava feliz ou trite. É uma pessoa sem expressão... Ou melhor, estava sem expressão naquele momento e é uma lição que aprendemos rápido que as expressões são fortemente modificadas na presença de conhecidos. Acho que não conhecia ninguém ali naquele ônibus... Provavelmente, não... Certamente, arrisco dizer...
E, enquanto eu me perco arriscando coisas que não são de fato acessíveis à mim, nossa personagem sussura um "Dá licença", que saiu tão inaudível quanto o seu "Obrigado" ao motorista. Ambos aparentemente imperceptíveis à qualquer criatura daquele ônibus, como saem algumas das nossas gentilezas verbais...
Estamos numa rua escura, com pouco movimento de carros. A mulher segue em direção ao estabelecimento mais iluminado que se vê daqui. Parece uma padaria ou algum pequeno...
...Não! Enganei-me. Virou à esquerda. Ali, era tudo de mesma luminosidade. Só casas. Entrou numa qualquer... presumivelmente, a dela. Estava escura, mas a adaptação que a má luminosidade da rua proporcionou aos olhos me permitiu ter uma idéia da distribuição de móveis e uma noção geral da casa. Não era grande, nem pequena. Isso se ela morasse sozinha. Talvez dividisse com alguém (o que a faria pequena), talvez morasse com os pais (o que a faria menor)... não sei. Sem acender luz alguma, e com passos no mesmo ritmo que caminhou do ponto de ônibus até aqui, dirigiu-se à um cômodo, de onde saiu antes que eu a acompanhasse e foi ao banheiro, que era agora o único cômodo iluminado da casa. Hesitei... Talvez devesse esperá-la sair... Dane-se: Segui. Tomou banho sem pressa, nem prazer aparente. A desgraçada era completamente desinteressante e sem surpresas! Ensaboava-se sem malícia, nem cuidado (nem chegou a lavar o pé!). Ao fim daquele espetáculo sem graça, o primeiro indício de alguma emoção: ao enxugar o rosto, desceu com a toalha até o peito e ali a segurou por um momento com as duas mão. Imóvel, fixava o olhar profundamente na direção de um azulejo que não tinha nada de especial. Enfim, um torcido na boca que pareceria um sorriso a quem tivesse disposto a ver um. Ah! Se ao menos tivesse outras pessoas na casa, ou se a maldita infeliz conversasse sozinha... Saindo dali, foi deitar. Dormiu rápido e quase não se mexeu durante a noite... Ninguém chegou na casa. Somente a manhã chegou no mesmo instante em que eu saí. Não foi de todo perdido... Mesmo não sendo interessante minha escolha, este texto morre junto como tempo que este narrador queria matar.
8 comentários:
Grande Leandro, gostaria apenas de lembrar que o "nosso idioma funciona" da seguinte forma:
personagem - substantivo comum-de-dois gêneros. :)
Mas é isso aí. Pelo menos você matou o tempo que você queria, né? ;)
Não tenho tempo pra matar, rapaz! Isso é coisa do Narrador, que não é ninguém além de outro personagem (esse, sim, meu) desinteressante.
Sim. Poderia ter dito "nosso personagem", ou "nossa personagem". Se não usou o "nossa" por alguma exigência gramatical, deve tê-lo feito por alguma anormalidade mental. Talvez, ele deveria ter escrito: "por que é assim que funciona nossa mente machista".
Mas, vá lá. Quem se preocupa com a mente de um sujeito que nem existe e, mesmo na sua inexistência consegue ficar entediado, a querer passar o tempo??
Não, seus estúpidos! Eu havia me referido ao "sujeito", que, para ser principal, tem que ter "algo de interessante e diferente".
"Anormalidade mental" tem o sujeito que me criou e não sabe me defender!!
Caro Narrador,
Se não for capaz de se comunicar sem agressões, vc será proibido e postar aqui e, o que é pior, será excluído da minha cabeça (que para vc é o Universo inteiro).
Caro Bruno,
Por favor, releve a má educação do Narrador. Ele foi criado assim mesmo com pavio curto. Não admira que tenha sido tão pouco generoso com a moça que é, provavelmente, uma pessoa interessante em muitos aspectos e apenas precisa de alguém que não olhe pra ela desesperado por achar uma boa história. Nenhum de nós seria uma boa história se fôssemos acompanhados por tão pouco tempo. Por outro lado, somos todos interessantes ao nosso modo.
A pressa em julgar e classificar as pessoas é a característica-mestra do Narrador.
Obrigado pelo comentário.
Ei, muito doido... irado aí essas parada ó, bicho. O esquema do lance é esse mermo, saca? Tempo livre é o que há de mais muderno. Utererê. :P
Ei, o que foi que vocês (especialmente o Leandro) andaram fumando? O efeito foi violento e duradouro! Massa!
Rapaz... uma das perguntas mais bem colocadas na história da humanidade.
Ô Leandro, vamo trabalhar rapaz!! Não vai mais atualizar isso aqui, não? Larga desta vida de doutorado, sô!!
Abracos,
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