terça-feira, 16 de outubro de 2012

Momento inconveniente

Enquanto o avião sacudia em meio a uma turbulência, eis o que eu lia:

... e eu lhe contei um sonho que tivera com uma estranha figura árabe que me perseguia através do deserto; uma figura da qual eu tentava escapar; que finalmente me alcançava pouco antes de chegar à Cidade Protetora. "Quem era?" perguntou Allen. Refletimos. Sugeri que talvez fosse eu mesmo vestindo um manto. Não era isso. Algo, alguém, algum espirito perseguia a todos nós através do deserto da vida e estava determinado a nos apanhar antes que alcançássemos o paraíso. Naturalmente, agora que reflito sobre isso, trata-se apenas da morte: a morte vai nos surpreender antes do paraíso. A única coisa pela qual ansiamos em nossos dias de vida, que nos faz gemer e suspirar e nos submetermos a todos os tipos de náuseas singelas, é a lembrança de uma alegria perdida que provavelmente foi experimentada no útero e que somente poderá ser reproduzida -- apesar de odiarmos admitir isso -- na morte.
(On The Road, de Jack Kerouac).

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A generosidade do chefe


O chefe, que nas horas vagas era poeta, decidiu, após 15 anos de escreve-e-reescreve, colocar enfim um ponto final no seu Magnum Opus. Bancou de seu próprio bolso a publicação e distribuiu algumas cópias aos amigos mais íntimos. Num arroubo de generosidade, chamou o secretário e forneceu quatro cópias do Versos Maturados, dizendo:

- Olha, distribui isso pro pessoal... Não consegui mais cópias, então decidam entre vocês um sorteio justo... Ou como brinde por algum feito, se preferirem... O que você acha?

- Ok. Pode deixar. Vou ver com o pessoal.

- Ah! E fica com uma cópia pra você. Sorteia só três. Só não comenta... alguém pode... Né?

- Ah, tá. Obrigado... Sim, sim, claro. Pode deixar.

- Outra coisa. É melhor fazer isso num dia em que eu não esteja. Você sabe... eu fico sem graça por não poder dar uma cópia pra cada... É que são muitos... Você sabe...

- Sei, sim. Pode deixar.

Duas semanas depois, a intuição do chefe suspeitou de algo estranho no ar; resolveu perguntar ao secretário se houve desentendimentos na distribiução dos livros. Pego de surpresa, o outro não conseguiu inventar mentira e disse de uma vez que decidiram por uma corrida. Que ganhariam os livros os três últimos. Entretanto, conseguiu parar a língua aí, sem acrescentar a desnecessária informação de que os três primeiros foram convidados a representar a empresa no atletismo, mas nos treinos jamais conseguiram repetir as façanhas daquele dia.

O chefe, sensível como um poeta, ficou mais pensativo do que irritado e não ousou perguntar ao secretário o que ele fizera com sua cópia. E o secretário, coitado, olhava pro chão e esperava, sem coragem de dizer que gostou dos versos.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Os bastidores do Prêmio Nobel de Literatura de 1961

O texto abaixo tem como base uns trechos da reportagem do The Guardian, entitulada Chances de J. R. R. Tolkien para o prêmio Nobel são frustradas por sua 'prosa pobre':


Os relatórios do comitê que julga os candidatos ao Prêmio Nobel permanecem em segredo por 50 anos após a premiação, quando os arquivos são enfim revelados (no site, algumas informações sobre as nomeações podem ser obtidas). No ano de 1961, o ganhador do prêmio Nobel de Literatura foi o escritor iugoslavo Ivo Andrić, "pela força épica com que ele traçou temas e retratou os destinos humanos forjados pela história do seu país". Na semana passada, foram divulgados os bastidores da disputa daquele ano, quando os nomes cotados incluíam Lawrence Durrell, Robert Frost, Graham Greene, Edward M. Forster e J. R. R. Tolkien.


Tolkien foi indicado por seu amigo (e autor das Crônicas de Nárnia) C. S. Lewis, que era professor de literatura em Oxford (portanto qualificado para indicar nomes, segundo as regras de nomeação). Um dos membros do júri, Anders Österling, escreveu que a prosa de Tolkien, autor do livro mais amado do Reino Unido segundo uma pesquisa de 2003 da BBC, "não é de modo algum considerada uma narração de alta qualidade".


Já Robert Frost (1874-1963) e Edward M. Forster (1879-1970) foram rejeitados devido às suas "idades avançadas". Sobre a rejeição de Forster em 1961, o jurado Österling disse ainda que o autor era "uma sombra de si mesmo, com uma saúde espiritual há tempos perdida". Entretanto, vale ressaltar que se a idade já representou uma restrição, aparentemente esse não é mais o caso, já que Doris Lessing o recebeu em 2007 com 87 anos de idade. Além disso, o banco de dados do site do Nobel mostra que Forst foi indicado antes (em 1950, ano em que Bertrand Russel ganhou o prêmio) e Forster também (em 1945, quando tinha apenas 66 anos e o prêmio foi dado à Gabriela Mistral).


Ainda segundo os documentos revelados sobre os bastidores do prêmio de 1961, o escritor inglês Lawrence Durrell "nos deixa com um sabor duvidoso... por causa de sua monomaníaca preocupação com as complicações eróticas" enquanto o romancista italiano Alberto Moravia "sofre de uma... monotonia generalizada". Na decisão final, o escritor inglês Graham Greene ficou em segundo lugar, seguido pela escritora dinamarquesa Karen Blixen que ficou em terceiro.