terça-feira, 1 de outubro de 2013

Trecho de Guerra & Paz

"Guerra & Paz não é um romance, muito menos um poema,
e menos ainda uma crônica histórica. É o que o autor quis
e foi capaz de expressar, na forma em que ele o expressou."

Liev Tolstói.


Depois de ter escrito sobre o cálculo diferencial e integral aplicado ao estudo da história, no início da terceira parte do tomo III, Tolstói, lá pelas tantas, faz uso dos conceitos de mecânica na física para explicar suas ideias sobre Guerra & Paz:

[…] a ciência militar avalia a força das tropas na exata medida do seu contingente. A ciência militar diz que, quanto mais tropas, maior a força. Les gros bataillons ont toujours raison. 
Ao dizer isso, a ciência militar se assemelha à mecânica, que, apoiando-se na avaliação das forças apenas com relação à massa, diria que as forças são iguais ou desiguais entre si porque a massa é igual ou desigual. 
A força (a quantidade de movimento) é o produto da massa vezes a velocidade. 
Na guerra, a força das tropas é também o produto da massa vezes algo, uma incógnita x. 
[…] Esse x é o ânimo das tropas, ou seja, o maior ou menor desejo de lutar e de se sujeitar-se aos perigos […] 
[…] Dez homens, batalhões ou divisões combatendo quinze homens, batalhões ou divisões venceram os quinzes, ou seja, mataram e fizeram prisioneiros a todos, sem sobrar nenhum, e perderam quatro; vale dizer, foram aniquilados de um lado quatro e de outro lado quinze. Portanto, quatro foram iguais a quinze e, portanto, 4x=15y. Portanto, x:y = 15:4. Essa equação não dá o valor da incógnita, mas dá a relação entre as duas incógnitas. E, da aplicação de tais equações às unidades históricas tomadas individualmente (as batalhas, as campanhas, as fases de uma guerra), obtém-se uma série de números, nos quais devem existir certas leis, que podem ser descobertas.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A maestria feminina na arte de retocar


O rapaz pedia uma segunda chance, aguardava resposta, cansou e ia-se, mas no mesmo instante a moça disse:

- Não vá!

Ele parou imediatamente e, sem saber o que fazer com o corpo, a questionou com os olhos. A moça subitamente compreendeu que não podia ser e mudou de ideia, mas, para não mostrar-se contraditória e dar razão definitiva pra ele em um dos tópicos em que mais discutiam, fez apenas uma leve correção na expressão para indicar-lhe enfado por ter que repetir e disse:

- Não, vá!

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Momento inconveniente

Enquanto o avião sacudia em meio a uma turbulência, eis o que eu lia:

... e eu lhe contei um sonho que tivera com uma estranha figura árabe que me perseguia através do deserto; uma figura da qual eu tentava escapar; que finalmente me alcançava pouco antes de chegar à Cidade Protetora. "Quem era?" perguntou Allen. Refletimos. Sugeri que talvez fosse eu mesmo vestindo um manto. Não era isso. Algo, alguém, algum espirito perseguia a todos nós através do deserto da vida e estava determinado a nos apanhar antes que alcançássemos o paraíso. Naturalmente, agora que reflito sobre isso, trata-se apenas da morte: a morte vai nos surpreender antes do paraíso. A única coisa pela qual ansiamos em nossos dias de vida, que nos faz gemer e suspirar e nos submetermos a todos os tipos de náuseas singelas, é a lembrança de uma alegria perdida que provavelmente foi experimentada no útero e que somente poderá ser reproduzida -- apesar de odiarmos admitir isso -- na morte.
(On The Road, de Jack Kerouac).

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A generosidade do chefe


O chefe, que nas horas vagas era poeta, decidiu, após 15 anos de escreve-e-reescreve, colocar enfim um ponto final no seu Magnum Opus. Bancou de seu próprio bolso a publicação e distribuiu algumas cópias aos amigos mais íntimos. Num arroubo de generosidade, chamou o secretário e forneceu quatro cópias do Versos Maturados, dizendo:

- Olha, distribui isso pro pessoal... Não consegui mais cópias, então decidam entre vocês um sorteio justo... Ou como brinde por algum feito, se preferirem... O que você acha?

- Ok. Pode deixar. Vou ver com o pessoal.

- Ah! E fica com uma cópia pra você. Sorteia só três. Só não comenta... alguém pode... Né?

- Ah, tá. Obrigado... Sim, sim, claro. Pode deixar.

- Outra coisa. É melhor fazer isso num dia em que eu não esteja. Você sabe... eu fico sem graça por não poder dar uma cópia pra cada... É que são muitos... Você sabe...

- Sei, sim. Pode deixar.

Duas semanas depois, a intuição do chefe suspeitou de algo estranho no ar; resolveu perguntar ao secretário se houve desentendimentos na distribiução dos livros. Pego de surpresa, o outro não conseguiu inventar mentira e disse de uma vez que decidiram por uma corrida. Que ganhariam os livros os três últimos. Entretanto, conseguiu parar a língua aí, sem acrescentar a desnecessária informação de que os três primeiros foram convidados a representar a empresa no atletismo, mas nos treinos jamais conseguiram repetir as façanhas daquele dia.

O chefe, sensível como um poeta, ficou mais pensativo do que irritado e não ousou perguntar ao secretário o que ele fizera com sua cópia. E o secretário, coitado, olhava pro chão e esperava, sem coragem de dizer que gostou dos versos.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Os bastidores do Prêmio Nobel de Literatura de 1961

O texto abaixo tem como base uns trechos da reportagem do The Guardian, entitulada Chances de J. R. R. Tolkien para o prêmio Nobel são frustradas por sua 'prosa pobre':


Os relatórios do comitê que julga os candidatos ao Prêmio Nobel permanecem em segredo por 50 anos após a premiação, quando os arquivos são enfim revelados (no site, algumas informações sobre as nomeações podem ser obtidas). No ano de 1961, o ganhador do prêmio Nobel de Literatura foi o escritor iugoslavo Ivo Andrić, "pela força épica com que ele traçou temas e retratou os destinos humanos forjados pela história do seu país". Na semana passada, foram divulgados os bastidores da disputa daquele ano, quando os nomes cotados incluíam Lawrence Durrell, Robert Frost, Graham Greene, Edward M. Forster e J. R. R. Tolkien.


Tolkien foi indicado por seu amigo (e autor das Crônicas de Nárnia) C. S. Lewis, que era professor de literatura em Oxford (portanto qualificado para indicar nomes, segundo as regras de nomeação). Um dos membros do júri, Anders Österling, escreveu que a prosa de Tolkien, autor do livro mais amado do Reino Unido segundo uma pesquisa de 2003 da BBC, "não é de modo algum considerada uma narração de alta qualidade".


Já Robert Frost (1874-1963) e Edward M. Forster (1879-1970) foram rejeitados devido às suas "idades avançadas". Sobre a rejeição de Forster em 1961, o jurado Österling disse ainda que o autor era "uma sombra de si mesmo, com uma saúde espiritual há tempos perdida". Entretanto, vale ressaltar que se a idade já representou uma restrição, aparentemente esse não é mais o caso, já que Doris Lessing o recebeu em 2007 com 87 anos de idade. Além disso, o banco de dados do site do Nobel mostra que Forst foi indicado antes (em 1950, ano em que Bertrand Russel ganhou o prêmio) e Forster também (em 1945, quando tinha apenas 66 anos e o prêmio foi dado à Gabriela Mistral).


Ainda segundo os documentos revelados sobre os bastidores do prêmio de 1961, o escritor inglês Lawrence Durrell "nos deixa com um sabor duvidoso... por causa de sua monomaníaca preocupação com as complicações eróticas" enquanto o romancista italiano Alberto Moravia "sofre de uma... monotonia generalizada". Na decisão final, o escritor inglês Graham Greene ficou em segundo lugar, seguido pela escritora dinamarquesa Karen Blixen que ficou em terceiro.

domingo, 13 de novembro de 2011

Miniantologia de Minicontos & Miniensaios

1-) A ARTE DA PRUDÊNCIA: O incauto apressou-se em parabenizar quando ouviu "casei no religioso e no civil", mas na verdade o outro tinha dito "casei no religioso e num serviu".

2-) EXPLICANDO A IRA DE DEUS: Na verdade, havia 3 pessoas no Paraíso. À terceira, irmã de Adão, o Senhor deu o nome Maçã.

3-) ELEIÇÕES: Estava decidido a votar na esquerda, mas ficou indeciso depois que perguntaram se era na esquerda de quem vem ou de quem vai.

4-) CULTURA HERMANA: Lá na Argentina, sexo é considerado uma situação muito embaraçosa... "Sólo con esto se puede embarazar", dizem os mais conservadores.

5-) DOENTE NA NOVA ERA: Infelizmente, a cura quântica não pôde salvá-lo. O paciente acabou por sucumbir à doença gravitacional.

6-) COISAS DE MÃE: Quando digo à minha mãe que não tenho novidades, ela diz: "graças a Deus!".

7-) PERSONALIDADES MÚLTIPLAS: O esperto mata dois coelhos com uma cajadada, o precavido mata um coelho com duas cajadadas e o lunático mata um cajado com duas coelhadas.

... um destes acima, e outros de outros foram publicados aqui pela Geração Editorial.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Caim

Abaixo transcrevo um trecho do livro Caim, de José Saramago. Aliás, uma vez que o livro é em si uma heresia, sinto-me tentado a cometer uma outra heresia, a saber, pontuar o texto de Saramago... vejamos quanto da beleza do texto se perde com isso de travessões.

Então caim contou a lilith o caso de um homem chamado abraão a quem o senhor ordenara que lhe sacrificasse o próprio filho, depois o de uma grande torre com a qual os homens queriam chegar ao céu e que o senhor com um sopro deitou abaixo, logo o de uma cidade em que os homens preferiam ir para a cama com outros homens e do castigo de fogo e enxofre que o senhor tinha feito cair sobre eles sem poupar as crianças, que ainda não sabiam o que iriam querer no futuro, a seguir o de um enorme ajuntamento de gente no sopé de um monte a que chamavam sinai e a fabricação de um bezerro de ouro que adoraram e por isso morreram muitos, o da cidade de madian que se atreveu a matar trinta e seis soldados de um exército denominado israelita e cuja população foi exterminada até à última criança, o de uma outra cidade, chamada jericó, cujas muralhas foram deitadas abaixo pelo clangor de trombetas feitas de cornos de carneiro e depois destruído tudo o que tinha dentro, incluindo, além dos homens e mulheres, novos e velhos, também os bois, as ovelhas e os jumentos.

- Foi isto o que eu vi - rematou caim - e muito mais para que não me chegam as palavras.

- Crês realmente que o que acabas de contar acontecerá no futuro? - perguntou lilith.

- Ao contrário do que costuma dizer-se, o futuro já está escrito, o que nós não sabemos é ler-lhe a página - disse caim enquanto perguntava a si mesmo aonde teria ido buscar a revolucionária ideia.

- E que pensas do facto de teres sido escolhido para viveres essa experiência?

- Não sei se fui escolhido, mas algo sei, sim, algo devo ter aprendido.

- Quê?

- Que o nosso deus, o criador do céu e da terra, está rematadamente louco.

- Como te atreves a dizer que o senhor deus está louco?

- Porque só um louco sem consciência dos seus actos admitiria ser o culpado directo da morte de centenas de milhares de pessoas e comportar-se depois como se nada tivesse sucedido, salvo, afinal, que não se trate de loucura, a involuntária, a autêntica, mas de pura e simples maldade.

- Deus nunca poderia ser mau ou não seria deus, para mau temos o diabo.

- O que não pode ser bom é um deus que dá ordem a um pai para que mate e queime na fogueira o seu próprio filho só para provar a sua fé, isso nem o mais maligno dos demónios o mandaria fazer.

- Não te reconheço, não és o mesmo homem que dormiu antes nesta cama - disse lilith.

- Nem tu serias a mesma mulher se tivesses visto aquilo que eu vi, as crianças de sodoma carbonizadas pelo fogo do céu.

- Que sodoma era essa?

- A cidade onde os homens preferiam os homens às mulheres.

- E morreu toda a gente por causa disso!?

- Toda, não escapou uma alma, não houve sobreviventes.

- Até as mulheres que esses homens desprezavam?

- Sim.

- Como sempre, às mulheres, de um lado lhes chove, do outro lhes faz vento.

- Seja como for, os inocentes já vêm acostumados a pagar pelos pecadores.

- Que estranha ideia do justo parece ter o senhor...

- A ideia de quem nunca deve ter tido a menor noção do que possa vir a ser uma justiça humana.

- E tu? Tem-na? - perguntou lilith.

- Sou apenas caim, aquele que matou o irmão e por esse crime foi julgado.

- Com bastante benignidade, diga-se de passagem - observou lilith.

- Tens razão, seria o último a negá-lo, mas a responsabilidade principal teve-a deus, esse a que chamamos senhor.

- Não estarias aqui se não tivesses matado abel, pensemos egoistamente que uma coisa deu para a outra.

- Vivi o que tinha de viver, matar o meu irmão e dormir contigo na mesma cama são tudo efeitos da mesma causa.

- Qual?

- Estarmos nas mãos de deus, ou do destino, que é o seu outro nome.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Palíndromos

Dois exemplos em português:

A MALA NADA NA LAMA;

SOCORRAM-ME SUBI NO ÔNIBUS EM MARROCOS;

... e, o mais interessante de todos, em latim,

SATOR
AREPO
TENET
OPERA
ROTAS

O chamado "quadrado de Sator" pode ser lido em diversas direções e já vi, embora não lembre onde, a tradução "o criador opera sua obra", o que depois descobri que não é de todo correto, já que há discussões sobre seu significado. De qualquer modo, escrevo aqui mas para tê-lo à mão em caso de perdê-lo na memória.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Porque japoneses são todos iguais?

Retirei o texto abaixo do Jornal da Ciência, onde se encontra a versão integral.

Não, os japoneses não são todos iguais. O que acontece, mostraram agora os cientistas, é que o "software" de reconhecimento facial do cérebro tem as suas limitações, e uma delas é patinar sempre que se depara com um rosto de uma etnia diferente.


Os pesquisadores selecionaram mais de 20 voluntários, metade de Europa e metade da Ásia. Mostraram a eles faces genéricas de orientais e ocidentais. Enquanto isso, observavam a sua atividade cerebral.


Perceberam que os voluntários decoravam com facilidade rostos de gente da mesma etnia que eles. Mas quando um europeu começava a observar faces orientais, logo se perdia e já não sabia dizer se um novo rosto era inédito ou não - e vice-versa.


Ao observar o que estava acontecendo no cérebro do coitado do europeu, perdido tentando lembrar se aquele chinês não era o mesmo que já tinha aparecido lá no começo, os cientistas notaram um significativo aumento na sua atividade neural. [Por outro lado,] um japonês que nunca saiu do seu país, ao desembarcar, digamos, na Alemanha, vai achar todos aqueles loiros muito parecidos e se questionar como é que eles conseguem saber quem é quem no dia-a-dia.


A explicação evolutiva mais simples para esse bug cerebral passa pelo fato de que passear pelo mundo fazendo amigos é coisa recente. Por dezenas de milhares de anos, encontros com etnias diferentes eram muito raros. Só era necessário identificar gente parecida, e o cérebro se moldou para isso.


Roberto Caldara, neurocientista italiano da Universidade de Glasgow (Escócia) e autor do trabalho publicado na revista científica "PNAS", diz que é interessante notar como esse cérebro limitado se adapta às grandes cidades cosmopolitas do presente, com gente de todo tipo nas ruas.


Isso vale, então, diz, para São Paulo: para parar de confundir orientais (e irritá-los chamando, por exemplo, coreano de japonês), é necessário se entrosar socialmente - só passear no bairro da Liberdade não adianta.


Jean Charles foi vítima do "bug", diz o cientista:


Roberto Caldara diz que a dificuldade para reconhecer gente de outras etnias pode ter "consequências dramáticas". Ele cita o exemplo do estudante brasileiro Jean Charles de Menezes. Ele levou, em 2005, sete tiros da polícia da Londres no Metrô da cidade, antes que pudesse falar alguma coisa.


(Eu acho que a polícia foi vítima do "bug". Jean Charles foi vítima da estupidez! Bom, voltemos ao texto:)


Ainda existem dúvidas na área de estudo de Caldara, porém. Provavelmente os resultados encontrados se repetiriam com outras etnias (negros, por exemplo), mas é necessário testar.


Além disso, os pesquisadores acham que pode ser interessante estudar como o cérebro reage quando exposto a faces mestiças. "Queremos saber exatamente também onde e como isso tudo acontece no cérebro", diz o cientista.


(Ricardo Mioto)

(também publicado em Folha de SP, 2/11)